Maria de Lourdes Nunes Ramalho, ou Lourdes Ramalho, como é conhecida literariamente, é uma escritora nascida no início da década de 1920 (23 de agosto, 1923), no sertão de JARDIM DO SERIDÓ, Estado do Rio Grande do Norte (...), numa família de artistas e educadores: bisavô violeiro e repentista, mãe professora e dramaturga, tios atores, cordelistas e violeiros. Na infância, enquanto recebia o que havia de melhor em termos de educação formal no sertão, Lourdes Ramalho cresceu ouvindo cantorias de viola e histórias contadas por vendedores de folhetos e assim aprendeu, desde cedo, a amar sua terra e a cultura do seu povo. Essa relação, de natureza atávica, da autora com a poesia popular, na realidade, se confunde com a história de seu bisavô, Hugolino Nunes da Costa, um dos expoentes da primeira geração de cantadores surgida no sertão paraibano em meados do século XIX dando seqüência a uma linhagem iniciada por Agostinho Nunes da Costa, considerado o pai da poesia sertaneja nordestina. É deste contato com cantadores, cordelistas e contadores de história que vem o aprendizado dos procedimentos próprios da literatura popular, mais tarde assimilados em sua dramaturgia.
O QUE LOURDES RAMALHO ESCREVE
A maior parte da produção literária de Lourdes Ramalho é de textos
para teatro. Seu fazer literário passa, entretanto e desde sempre, pela poesia
e, ultimamente, contempla, ainda, a área da genealogia – revelando-se também aí
a pesquisadora de fontes históricas, interessada em descobrir as raízes
judaicas da cultura nordestina e, por extensão, da sua própria família. Suas
primeiras peças foram escritas por volta dos seus 10-12 anos de idade, quando
brincar de teatro era sua diversão favorita. Incentivada pelos tios e,
sobretudo, pela mãe, a menina Lourdes colocava no papel as falas e as ações das
personagens que re/inventava e, em seguida, comandava os ‘ensaios’ para as
apresentações, de que também participava e que aconteciam em reuniões
familiares e escolares. Datam desse tempo as primeiras versões de alguns dos
seus muitos textos teatrais infantis.
Quando escreveu o primeiro texto teatral propriamente dito, em
1939, Lourdes era ainda uma adolescente. Aluna de um colégio interno, no
Recife, indignada com a precariedade de condições da escola, põe no papel, em
forma de comédia, seus protestos contra a falta de professores qualificados, a
má qualidade da alimentação e as medidas disciplinares abusivas. Transformado
em cena pela própria autora, o texto foi apresentado na festa de encerramento
do ano letivo do colégio, detonando um embate entre pais e mestres, que
resultou na expulsão da aluna-escritora.
Nos trinta anos seguintes, ou seja, entre as décadas de 1940 e
1970, é na sala de aula e em grêmios artísticos estudantis que Lourdes,
conciliando seu o ofício de dramaturga e poeta com o de professora, encontra
espaço para suas atividades de animação cultural, voltadas especialmente para a
cena teatral e já então anunciadas como projeto de vida. De 1975 em diante,
após a primeira montagem teatral do seu texto As velhas, seus textos começam a
ser montados fora de Campina Grande, na Paraíba, onde reside até hoje, ganhando
a estrada rumo a outras partes do país através de festivais de teatro amador.
LOURDES RAMALHO, O TEATRO BRASILEIRO
E O NORDESTINO
Situar a dramaturgia de Lourdes Ramalho no contexto do teatro
nordestino e, mais amplamente, no quadro do teatro brasileiro contemporâneo,
demanda um flash-back, feito aqui muito brevemente, aos idos de 1959, em
Recife, onde um grupo de atores, intelectuais e poetas, se forma em torno da
idéia de redemocratizar o teatro. Herdeiros de um ideário estético ligado à
tradição regionalista do romance de 30, os integrantes deste grupo, entre eles,
Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, tomam a si a tarefa de renovar a cena
teatral local.
Adaptando as propostas que o Teatro de Arena de São Paulo vinha
divulgando Brasil afora, o grupo se mobiliza para escrever e levar ao palco
textos que mostrassem a cara do nordestino, colocando em cena experiências,
conflitos e sonhos do povo da região. O Teatro Popular do Nordeste, como foi
batizado esse grupo, defendia o conceito de um teatro popular, apoiando-se,
sobretudo, no trabalho de recriação das narrativas do imaginário popular,
traduzindo a intenção de levar a população local a reconhecer a si mesma e à
sua cultura. Logo surgem pela região outros grupos afinados com esta proposta e
buscando assimilar as tendências em curso no Sudeste. Em meio a esta
efervescência, surge o Teatro do Estudante da Paraíba, também com o propósito
de renovar a cena local via cultura popular. Na década seguinte, cresce um
movimento em torno do Teatro Santa Roza, em João Pessoa, e do recém-construído
Teatro Severino Cabral, em Campina Grande, e já na primeira metade dos anos
1970, entre outros nomes da dramaturgia local, como Altimar Pimentel e Paulo Pontes,
começa a ganhar projeção o de Lourdes Ramalho.
São desta época, peças como Fogo-fátuo, As velhas, A feira, Os
mal-amados, A eleição, com as quais Lourdes Ramalho desponta no cenário teatral
do país, com a proposta de reinventar no palco o universo nordestino,
valorizando sua herança cultural. Nestes textos, que formam o primeiro ciclo
desta dramaturgia, estão em discussão a seca, o êxodo rural e os abusos de
poder político local, lado a lado com questões relacionadas a vinganças
familiares e amores impossíveis que acabam tragicamente. Opõe-se, outra hora, o
rural e o urbano, o ingênuo e o esperto, o privilegiado e o discriminado, o
opressor e o oprimido. Joga-se, formalmente, com o sério e o burlesco, o
trágico e o cômico, o sublime e o vulgar, a indicar os contrastes tão próprios
da vida humana e revelando, ainda, a dramaturga engajada, pronta a denunciar a
poluição cultural que invade o sertão nordestino na época do segundo pós-guerra
com a presença norte-americana em busca das jazidas de minério ali existentes e
a prática corrupta dos políticos na corrida pelo voto e, por extensão, pelo
poder, como também as conseqüências trágicas provocadas por práticas
socioculturais fincadas na assimetria das relações de gênero.
Outra linha de força da dramaturgia de Lourdes Ramalho toma corpo
a partir dos anos 1990, quando ela passa a dar mais ênfase a uma dramaturgia em
cordel. Romance do conquistador, por exemplo, escrito em 1991, nasce
precisamente de uma encomenda dentro do Projeto de Incentivo à Dramaturgia de
Cordel, desenvolvido em Campina Grande, sob a coordenação do diretor
ibero-brasileiro Moncho Rodriguez, a partir do Centro Cultural Paschoal Carlos
Magno. Encenado em terras brasileiras nesse mesmo ano, Romance do conquistador
saiu em turnê pela Espanha, em 1992, como representante do Brasil nos festejos
dos 500 anos da chegada dos espanhóis à América.
Compõem este segundo ciclo da dramaturgia de Lourdes Ramalho
vários outros textos, como O trovador encantado, Charivari, Presépio mambembe e
Guiomar filha da mãe, nos quais se privilegia uma proposta estética voltada
para o desvendamento e a re-significação das raízes étnico-culturais do
universo popular nordestino, especialmente as que remontam à cultura ibérica do
século XVI. Deste modo, sem deixar de lado o propósito de discutir e dar
visibilidade a práticas culturais e experiências de mundo da gente do sertão
nordestino, Lourdes Ramalho busca situá-las num contexto que traz à tona traços
de uma ancestralidade ibérica.
Dentre os quase cem textos teatrais escritos por Lourdes Ramalho
até hoje, grande parte deles em prosa, mas muitos também em verso, que vão da
farsa à tragédia, há um vasto repertório dedicado ao público infantil. Em suas
incursões no universo do teatro para crianças, a autora revisita personagens,
fábulas e procedimentos estéticos da literatura popular em verso e de contos de
fadas, além de provérbios e danças dramáticas, realizando uma mistura de versos
e ritmos, tudo envolto num clima de magia, brincadeira e festa, próprio da
cultura popular e, igualmente, do teatro infantil. Textos como Novas aventuras
de João Grilo, Dom Ratinho e Dom Gatão, O diabo religioso, Maria Roupa de Palha
e Anjos de Caramelada, além de muitos outros, instituem este mundo de fantasia,
recriado a partir do teatro popular de rua, do circo, das histórias de folheto
de cordel, a que não falta, porém, a crítica social incisiva característica da
produção da autora.
Autora de extensa obra publicada, celebrada como grande dama da
dramaturgia nordestina, premiada no Brasil, em Portugal e na Espanha em
inúmeros concursos de dramaturgia e festivais de teatro, Lourdes Ramalho é,
portanto, esta dramaturga ímpar na história do teatro da Paraíba, que tem seu
lugar assegurado – mas ainda não plenamente reconhecido – entre os grandes
nomes do teatro brasileiro, sendo uma das expressões mais significativas da
nossa dramaturgia contemporânea de autoria feminina.
Lourdes Ramalho faleceu em Campina Grande, Estado da Paraíba, no 7 de setembro de 2019
POR: VALÉRIA ANDRADE
IMAGENS: ACERVO PESSOAL DE MARIA DE LOURDES NUNES RAMALHO